Por Gazeta do Povo
Fux diverge de Moraes e aponta nulidades no julgamento de Bolsonaro e demais réus (Foto: Rosinei Coutinho/STF)
O ministro Luiz Fux apresentou, em seu voto no julgamento da ação penal da suposta tentativa de golpe, uma série de argumentos que confrontam diretamente a posição do relator, Alexandre de Moraes. Fux detectou vícios que comprometem a regularidade do processo, abrangendo desde a competência para julgar até o respeito ao direito de defesa dos acusados. O ministro também apresentou voto contrário ao de Moraes em relação aos crimes atribuídos ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e aos demais réus do caso.
As divergências de Fux foram apontadas ao tratar de duas fases do voto: as questões preliminares (como a competência do STF para cuidar do caso e a validade do depoimento do delator) e o mérito da ação penal (se os réus são ou não culpados dos crimes).
Em um julgamento, os ministros costumam analisar primeiro as chamadas preliminares, que são questões processuais, como é o caso da competência do tribunal. Elas não tratam diretamente do crime em si, mas verificam se o processo está sendo conduzido dentro das regras legais. Só depois é avaliado o mérito, que diz respeito ao conteúdo da acusação: se os fatos narrados pelo Ministério Público realmente configuram os crimes imputados aos réus e se há provas suficientes para condenação.
Em três das questões preliminares, Fux divergiu do relatório apresentado por Moraes. Além disso, Fux apontou que os cinco crimes imputados a Bolsonaro e aos demais réus não estão caracterizados nas provas apresentadas.
Com as ponderações de Fux, o julgamento da suposta tentativa de golpe deve ganhar novos capítulos, já que os pontos de divergência fortalecem os argumentos apresentados pela defesa e podem fundamentar pedidos de revisão e recursos. Além disso, os discursos políticos também se fortalecem com argumentos de perseguição e falhas do julgamento.
Para a doutora em Direito Público Clarisse Andrade, um voto divergente de um ministro do STF em relação ao relator em uma ação penal com essa envergadura indica falta de consenso interno e expõe uma fragilidade institucional. “Ficou claro que não há uniformidade na interpretação dos fatos sobre os crimes julgados e nem mesmo sobre a Constituição. Isso pode gerar insegurança jurídica sobre os limites de atuação da Corte em um caso tão polêmico, sobretudo como esse do suposto golpe”, disse.
Veja as principais contestações apontadas por Fux:
1. STF não tem competência para julgar o caso
Ao analisar as preliminares, Fux sustentou que o Supremo Tribunal Federal não tem competência para julgar o caso, tendo em vista que os réus não têm foro privilegiado. Como já deixaram os cargos, eles deveriam ser julgados na primeira instância da Justiça.
O ministro citou precedentes do STF em que processos da Operação Lava Jato foram anulados por inteiro por incompetência relativa, isto é, por controvérsia ligada ao local onde a ação deveria ser julgada.
Foi o caso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cuja condenação foi anulada pelo STF por considerar que o processo deveria ter sido iniciado em Brasília e não em Curitiba.
“Estamos diante de uma incompetência absoluta”, destacou Fux – a incompetência absoluta refere-se à situação em que a lei é mais clara sobre o tribunal adequado de julgamento – como nos casos de foro privilegiado.
Na visão do ministro, essa falha fere o princípio do juiz natural, levando-o a votar pela nulidade de todos os atos decisórios decorrentes dessa ausência de competência.
2. Julgamento deveria ocorrer no plenário
Em seu voto, Fux ponderou que, ainda que se considere que há prerrogativa de foro para os réus, o julgamento não deveria ocorrer na Primeira Turma. “Se é julgado como presidente, tem que ser julgado no plenário”, afirmou, lembrando que casos conexos já foram apreciados pela Corte completa.
É o caso de centenas de processos do 8 de Janeiro de 2023, que só foram transferidos para a Primeira Turma após uma mudança regimental no fim do ano passado.
Assim, Fux completou que há apenas duas opções viáveis na questão da competência: remeter o processo à primeira instância ou suscitar sua apreciação pelo plenário do STF. “Ou desce para a primeira instância, ou sobe para o plenário”, sintetizou.
Fux já havia levantado esse ponto durante o recebimento da denúncia em março. Naquela oportunidade, o ministro foi o único voto vencido entre os cinco integrantes da Primeira Turma. “Ou nós estamos julgando pessoas que não exercem mais função pública e não têm mais foro de prerrogativa do Supremo, ou nós estamos julgando pessoas que têm essa prerrogativa. E o local correto seria, efetivamente, o plenário do STF”, disse Fux ainda em março.
3. Defesa foi cerceada por despejo massivo de dados
Além das discussões sobre a competência, Fux apontou cerceamento de defesa provocado pelo chamado data dump (despejo de dados, em inglês), ao se referir à entrega tardia e maciça de provas e documentos. O data dump é caracterizado pelo grande volume de documentos juntados ao processo apresentado à defesa de forma desorganizada e com pouco tempo para análise.
Fux enumerou a existência de cerca de 1.200 equipamentos apreendidos, 255 milhões de mensagens de áudio e vídeo, sem qualquer organização ou índice, resultando em cerca de 70 terabytes de dados.
“Para piorar, novos arquivos foram incorporados durante a fase instrutória”, completou o ministro ao afirmar que tal fato agravou ainda mais os desafios à defesa. Ele ressaltou que se passaram 161 dias entre o recebimento da denúncia e o julgamento, período considerado insuficiente para a análise do material apresentado.
Em sua argumentação, Fux ainda comparou o caso com o processo do mensalão, para fazer um contraste com a celeridade do caso atual. “O processo do mensalão levou dois anos para receber a denúncia e cinco anos para ser julgado”, recordou.
4. Crimes contra a democracia são improcedentes
Ao tratar do mérito da ação, Fux votou pela improcedência dos crimes imputados aos réus. Fux disse que não houve atos de execução dos crimes de golpe de Estado e de abolição do Estado Democrático de Direito.
Ele argumentou que a cogitação e a preparação não podem ser punidas. Apenas um ato executório concreto, com potencial para lesar a democracia, poderia ser punido.
Fux ainda considerou que os crimes de dano qualificado e deterioração do patrimônio não podem ser somados para condenar os réus. O primeiro, por ser mais grave, deveria se sobrepor. Mas, se a conduta for considerada um meio para se alcançar a abolição do Estado Democrático de Direito, o réu só poderia ser condenado por este último crime.
5. Formação de organização criminosa armada não foi provada
Para o ministro, os elementos apresentados não foram suficientes para caracterizar a tipificação penal de organização criminosa armada. Fux destacou a necessidade de “estabilidade e permanência” do grupo com a finalidade de cometer crimes indeterminados para que o crime ficasse configurado.
Ele falou ainda sobre a necessidade do efetivo emprego da arma de fogo durante os atos para que se caracterize o crime de organização criminosa armada.
O ministro sustentou também que o simples fato de pessoas envolvidas nos atos de 8 de janeiro possuírem licença para ter armas ou portá-las não caracteriza por si só o fator agravante. Segundo ele, a PGR teria que ter apresentado alguma prova de que armamentos foram de fato utilizados, o que não aconteceu.
6. Condutas não foram individualizadas
Ao tratar dos crimes de dano qualificado e deterioração de patrimônio no 8 de Janeiro de 2023, Fux destacou que não pode ser admitida a responsabilização pelos delitos sem individualização das condutas. “Um acusado não pode ser responsabilizado por dano causado por terceiro”, apontou o ministro.
Ao justificar seu entendimento, Fux citou casos como o envolvendo danos causados por manifestantes à sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Neste caso, Fux disse que em outro protesto um líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que não teve o nome mencionado, não foi incriminado pelos atos praticados pelos manifestantes.
Fux também citou a absolvição dos chamados black blocks, responsáveis por atos que causaram danos e furtos na Esplanada dos Ministérios.
Ele citou como exemplo o caso de uma senhora que esteve nos protestos, mas sua defesa mostrou com provas que ela não participou de nenhuma invasão ou quebra-quebra. Por isso, o ministro considerou insuficiente o argumento de que foi praticado um crime de multidão.
Isso não isentaria a PGR de apresentar provas específicas contra cada um dos réus. Além de não estarem presentes nos atos de vandalismo na Praça dos Três Poderes, Fux não viu uma ordem direta, no dia, dirigida por eles aos manifestantes.
7. Tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado
Ao tratar do crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, Fux primeiro apresentou conceitos sobre democracia, que pressupõem ampla liberdade de expressão. Para o ministro, para que seja configurado o crime, o agente deve atentar contra todos os aspectos que compõem uma democracia.
No que tange à liberdade de expressão, o ministro Fux lembrou que ministros devem evitar julgar declarações políticas. “Falas infelizes de políticos devem ser resolvidas nas urnas, não nos tribunais”, disse, referindo-se a falas de Bolsonaro contra o STF em 7 de setembro de 2021 – na época, ele chamou Moraes de canalha e disse que não cumpriria mais as ordens do ministro.
Fux lembrou que, na lei que define os crimes contra a democracia, foi vetado o crime de “comunicação enganosa em massa”, que consistia em “promover ou financiar campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos, e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral”.
O próprio Bolsonaro vetou esse crime em 2021, por “afastar o eleitor do debate político, o que reduziria a sua capacidade de definir as suas escolhas eleitorais, inibindo o debate de ideias, limitando a concorrência de opiniões”.
A ausência de deposição do governo legitimamente constituído também foi mencionada por Fux como um dos requisitos para o enquadramento.
Divergências de Fux podem reforçar recursos da defesa e até anulação do julgamento
As divergências do ministro Luiz Fux não apenas conferem robustez técnica ao voto, mas também oferecem instrumentos estratégicos para os advogados dos réus. Conforme antecipou uma reportagem da Gazeta do Povo, um voto divergente pode servir de base para que a defesa recorra ao plenário ou formule recursos mais fundamentados, além de dar subsídios para pedidos de anulação do julgamento.
Embora uma divergência isolada dificilmente mude o resultado final, que depende da maioria, ela abre espaço para embargos de declaração e outros recursos processuais, possibilitando questionar omissões ou contradições no acórdão, além de prolongar o trâmite e assim estender o julgamento.
Do ponto de vista político, a posição de um ministro com o prestígio de Fux carrega peso simbólico. A defesa pode utilizá-la como argumento de inconsistência ou falhas do julgamento — especialmente em momentos futuros, em cenários judiciais ou políticos mais favoráveis.
Para o professor de Direito Constitucional Alessandro Chiarottino, o voto divergente de Luiz Fux é extremamente útil aos réus porque escancara para o mundo a violação de suas garantias constitucionais. “Além disso, depois poderá ser utilizado em eventual pedido de revisão criminal”. O professor também avalia que os argumentos utilizados no voto de Fux podem, inclusive, ser usados em recursos a tribunais internacionais.
O voto divergente do ministro representa um marco relevante para a dinâmica interna do STF e sinaliza fissuras na estratégia de Alexandre de Moraes, avalia o doutor em Direito e comentarista político Luiz Augusto Módolo.
“Partindo da boa-fé de que o voto de Fux é genuinamente dele, sem qualquer combinação com outros ministros, trata-se de um voto demolidor”, afirma Módolo. Segundo ele, Alexandre de Moraes sempre priorizou a unanimidade. “Mas agora há furos no casco”, ressalta.