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O que a lei dos extintores diz sobre o Brasil

Prevista desde 2009, substituição dos equipamentos pegou “de surpresa” motoristas e fabricantes, desavisados pela ausência de campanhas por parte do governo

10/01/2015 | 06h01

O que a lei dos extintores diz sobre o Brasil Luiz Armando Vaz/Agência RBS

Foto: Luiz Armando Vaz / Agência RBS

Conhecido por descrever a sufocante e inflexível burocracia do Estado sobre os ombros do homem comum, o escritor Franz Kafka talvez encontrasse um enredo no recente caso dos extintores de incêndio para carros. Uma sucessão de presepadas do governo e de fabricantes, temperada pelo desespero e pela imprevidência de motoristas, tornou impossível o cumprimento de uma obrigatoriedade. Assim, a entrada em vigor da lei — aprovada em novembro de 2009, com cinco anos para adequação — precisou ser adiada.

Motoristas autuados por não regularizarem extintores terão de pagar multas

No dia 27 de dezembro, começaram a pipocar notícias sobre a obrigação de veículos circularem a partir de 1º de janeiro com extintores com carga modelo ABC, que combatem chamas em líquidos inflamáveis e cabos elétricos. Era uma resolução do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) de 2009, prevista para vigorar em 2015.

Muitos motoristas descobriram pelos jornais que o prazo para a mudança se esgotava. Na correria às lojas e aos postos de gasolina, chegaram tarde demais. Em Porto Alegre, extintores ABC desapareceram em três dias. Desabastecidos, comerciantes diziam que a nova remessa viria apenas depois do Ano-Novo.

Denatran adia fiscalização de novos extintores para início de abril

Seria tarde: na imprensa, porta-vozes da Polícia Rodoviária Federal avisavam que não dariam trégua na fiscalização, e quem fosse pego sem o extintor ABC pagaria multa de R$ 127,69 e teria o carro recolhido. A situação ganhava ares de pânico, e logo viria a boataria: alguns condutores atrasados acusavam comércio e fabricantes de estocar o produto para elevar o preço.

— A sensação de que a lei poderia não pegar, como tantas outras, acabou levando as pessoas a esperarem até a última hora para comprar o tal extintor. E, em um autoritarismo típico brasileiro, o Estado ameaça punir, em vez de chamar ao debate e apresentar estudos que apontem as vantagens da mudança — analisa o professor de filosofia e ética da Unicamp, Roberto Romano.

Há quem diga que a ausência de campanhas oficiais de conscientização atrapalhou o planejamento de motoristas. Houve confusão a respeito de quais carros já portavam o novo extintor, por exemplo (todos fabricados desde 2005 já deveriam ter; restaria ao dono verificar a validade).

— Foi um caso gritante de descumprimento ao direito à informação. Há centenas, milhares de normas e resoluções todo ano, e o cidadão não tem como memorizar. Era obrigação do governo informar plenamente a mudança — avalia Maria Inês Dolci, diretora da Proteste Associação de Consumidores.

ATENÇÃO: novo prazo termina daqui a 85 dias

Como se estivesse desavisada, a indústria afundou na enxurrada de pedidos. A Associação Brasileira das Indústrias de Equipamentos Contra Incêndio (Abiex) atribui a escassez ao período de final de ano, quando muitas companhias dão férias coletivas. A demanda de dois meses foi esgotada em um par de dias.

— Nunca vi tanta gente atrás de extintores. Tínhamos um estoque para o verão todo, e já vendemos tudo. Tentamos antecipar as entregas já agendadas, sem sucesso — conta Suelen Almeida, atendente na Casa dos Extintores, em Porto Alegre.

Em cenas que lembraram o corre-corre na época da falta de alimentos durante o Plano Cruzado, nos anos 1980, postos criaram lista de espera, e motoristas viajaram quilômetros para garimpar um extintor, às vezes dispondo-se a pagar até quatro vezes mais —frentistas disseram que alguns estabelecimentos estavam cobrando R$ 240 por um equipamento cujo preço varia de R$ 60 a R$ 95.

Sem o extintor no mercado, o governo fez o óbvio: adiou por 90 dias o vigor da nova regulamentação —tempo suficiente para que os estoques sejam repostos, garante a Abiex. Resta ver se os motoristas, novamente, não vão deixar para a última hora a substituição do equipamento. Faltam exatamente 85 dias.

Equipamento não é obrigatório nos países que mais fabricam carros

O Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) defende a mudança do tipo de extintor —de carga BC para carga ABC —por uma questão de segurança: “o pó especial é capaz de combater princípios de incêndios em materiais sólidos, líquidos inflamáveis e equipamentos energizados”, descreve o órgão em nota.

Poucos países obrigam motoristas a terem extintor no carro. Ainda que seja difícil imaginar alguém sem treinamento sair à caça das chamas, no Brasil a ausência desses equipamentos rende multa, cinco pontos na carteira e risco de retenção do veículo.

—Essa obrigação tem 47 anos. Foi feita quando os carros tinham carburadores, e o risco de incêndio era bem maior. Hoje, os carros têm injeção eletrônica e compartimentos que tornam quase impossível o vazamento de combustível, mesmo em capotagens —afirma Francisco Satkunas, conselheiro da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade.

A maior parte dos países desenvolvidos deixou de exigir os extintores, incluindo os principais fabricantes de automóveis: Alemanha, China, Japão, Suécia e EUA. O item ainda é obrigatório em locais como Argentina e Bélgica.

—Sem treinamento, alguém corre o risco de espalhar a chama em vez de apagar. É hora de rediscutir essa exigência —diz Satkunas.

Zero Hora

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