Liberdade de opinião é fundamental para a democracia

Por Gazeta do Povo

talk show censura jimmy kimmel
Democracia pressupõe liberdade de opinião, sem pressões estatais contra críticas desagradáveis. (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

Em 2007, o ditador venezuelano Hugo Chávez fechou uma das emissoras de televisão mais antigas da América Latina, a Radio Caracas Televisión, fundada em 1953. Enquanto a concorrência suavizava seu discurso à medida que o regime chavista se tornava mais autoritário, a RCTV mantinha sua independência e suas críticas, irritando o caudilho bolivariano. Em 2006, Chávez afirmou que o governo não renovaria a concessão da RCTV, que saiu do ar em maio de 2007. À época, Lula, que estava em seu segundo mandato, classificou a decisão como “democrática”, dizendo em entrevista que “não dá para ideologizar essa questão da televisão. O mesmo Estado que dá uma concessão é o Estado que pode não dar a concessão”.

O absurdo dessa situação é evidente para qualquer pessoa minimamente ciente da importância da liberdade de imprensa como elemento necessário para um regime ser considerado democrático. Nenhum veículo jornalístico pode ser alvo de pressão política e ter seu funcionamento ameaçado por não se alinhar incondicionalmente ao mandatário de plantão. Esta ameaça está presente também no Brasil contemporâneo, onde o Ministério Público Federal acaba de entregar alegações finais em uma ação contra a Jovem Pan, solicitando o cancelamento de três concessões do grupo de mídia sob alegações de “promover desinformação de forma sistemática e veicular conteúdos que colocaram em risco o regime democrático brasileiro” – leia-se dar espaço a críticas ao STF e a questionamentos sobre o sistema eleitoral. Em resumo, trata-se de policiamento puro e simples do que se diz no ar, com a ameaça de uso do braço estatal contra opiniões “erradas”; coisa de ditaduras, como demonstrou o caso venezuelano.

O “interesse do público” é o acesso amplo à variedade de ideias e opiniões, e não um discurso único, seja de que lado for. No caso de um governo, isso significa também estar sujeito a críticas

Pressão estatal contra uma opinião “errada” também parece ter sido o caso do apresentador norte-americano Jimmy Kimmel, que teve seu programa suspenso pela emissora ABC (de propriedade da Disney) após comentários sobre a morte de Charlie Kirk. No último dia 15, o apresentador afirmou, no Jimmy Kimmel Live!, que “chegamos a novos pontos baixos no fim de semana, com a gangue Maga [“Faça a América Grande de Novo”] tentando desesperadamente caracterizar o garoto que assassinou Charlie Kirk como algo diferente de um deles e fazendo tudo o que pode para ganhar pontos políticos com isso”. Não era uma celebração da morte de Kirk, como tantos fizeram de forma abjeta nos EUA e também no Brasil; era uma crítica a apoiadores de Donald Trump que teriam se apressado em classificar o assassino como um esquerdista.

Foi uma frase precipitada, malandra e oportunista: após uma série de informações desencontradas sobre Taylor Robinson, as investigações têm mostrado que realmente se trataria de um radical de esquerda. Mas o ponto já não é este. Se a suspensão tivesse sido uma decisão livre da ABC, estaríamos debatendo a razoabilidade das políticas internas do grupo de mídia, e das eventuais respostas da sociedade (como boicotes) à decisão da emissora. No entanto, há um outro fator em jogo, muito mais relevante. Dois dias após a fala de Kimmel, Brendan Carr, presidente da Comissão Federal de Comunicações (FCC), na sigla em inglês, chamou o comentário de “verdadeiramente doentio”, pediu que a ABC e emissoras locais que retransmitiam o programa “tomassem uma atitude”, e deixou no ar uma ameaça: os canais “têm uma licença concedida por nós, da FCC, e ela vem com a obrigação de trabalhar no interesse do público”. Horas depois, Kimmel, com décadas de experiência na televisão, ganhador do Emmy e apresentador de quatro edições do Oscar, estava suspenso.

Qual é o “interesse do público”? Não temos dúvida disso: interessa ao público o acesso amplo à variedade de ideias e opiniões, e não um discurso único, seja de que lado for. No caso de um governo, isso significa também estar sujeito a críticas; nenhum órgão estatal tem o poder de julgar se elas são sensatas ou absurdas, se são formuladas de forma mais comedida ou mais agressiva, e muito menos de decidir quais dessas opiniões são aceitáveis ou não a ponto de terem sua veiculação vetada. A mentira se combate com a verdade; ideias e opiniões equivocadas se combatem com outras ideias e opiniões. Só autocratas ambicionam o chapabranquismo total.

E o caso de Jimmy Kimmel, lamentavelmente, pode estar longe de ser episódio isolado. O próprio Donald Trump afirmou, na quinta-feira, que não se incomodaria em ver algumas emissoras de seu país terem o mesmo destino da venezuelana RCTV. A bordo do Air Force One, o presidente norte-americano disse a repórteres que “eles [os grupos de mídia] ficam falando mal de mim o tempo todo, e eles têm uma concessão. Acho que talvez ela devesse ser revogada”. E acrescentou: “quando você tem uma rede [de comunicação] e tudo o que você faz é bater no Trump – e é isso que eles fazem –, essa concessão, eles não deveriam poder fazer isso. Eles são um braço do Partido Democrata”. Trump, que processou recentemente o jornal The New York Times (o processo foi rejeitado por questões formais), ainda pediu o cancelamento de outros programas de celebridades críticas a ele, como Jimmy Fallon e Seth Meyers, ambos da NBC.

Em nome da coerência, não há como condenar a não renovação da concessão da RCTV, nem o pedido de cancelamento das concessões da Jovem Pan, sem criticar também a pressão das autoridades norte-americanas contra as emissoras de televisão que têm entre os seus apresentadores celebridades críticas de Trump, do Partido Republicano ou dos conservadores em geral. A liberdade que defendemos para os jornalistas venezuelanos que não se curvaram à ditadura de Chávez, e para os comentaristas da Jovem Pan, é a mesma liberdade a que têm direito Jimmy Kimmel e outros alvos de Donald Trump e da FCC norte-americana: é o direito de se manifestar e de criticar. Esse direito tem, sim, os seus ônus, como o de também ser criticado, ou de ter suas ideias contestadas publicamente; mas jamais deveria vir acompanhado da ameaça de censura e repressão estatal pelo mero uso da liberdade de expressão.

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