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Hino do Rio Grande do Sul: entenda a polêmica sobre verso considerado racista por parte dos gaúchos

Proposta do Legislativo Gaúcho prevê dificultar mudança dos símbolos do Estado, que inclui a bandeira, o brasão e o hino – que contém versos considerados racistas por parlamentares negros

“Povo que não tem virtude / Acaba por ser escravo”. A discussão sobre estes versos do hino do Rio Grande do Sul, composto em 1838 durante a Guerra dos Farrapos (1835-1845), tem mobilizado a sociedade gaúcha nos últimos anos.

Para alguns, o trecho da letra de Francisco Pinto da Fontoura (a música é de Joaquim José Mendanha) é racista, já que não foi falta de virtude que fez os negros serem escravizados; para outros, “ser escravo” se refere a uma submissão territorial — na época, o estado de hoje era a República Rio-Grandense, que lutava para manter sua independência do Império do Brasil.

A disputa teórica ganha contornos práticos e, mais uma vez, a votação da PEC dos símbolos do Estado que era para esta terça-feira (4) não foi realizada. Assim como na semana anterior, não houve quórum para apreciar a proposta do deputado Rodrigo Lorenzoni (PL) e de outros 19 parlamentares, que institui a proteção e imutabilidade dos símbolos do Estado do Rio Grande do Sul (bandeira, hino e armas).

O motivo dessa PEC é o fato de os deputados Bruna Rodrigues (PcdoB), Matheus Gomes (PSOL) e Laura Sito (PT), que compõem a primeira Bancada Negra do Legislativo gaúcho, defenderem a necessidade de alteração de um trecho do hino onde afirma que “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”. Esses deputados apontam que este trecho é racista, uma vez que, segundo entendimento deles, a estrofe compara que o povo negro gaúcho – majoritariamente escravizado à época – foi submetido à ‘escravidão’ – e que por isso não possuíam virtude.

Ligados ao movimento negro gaúcho, os parlamentares salientam que a revisão da letra é uma demanda histórica, e ressaltam: Queremos afirmar que não somos contra o hino, mas precisamos rever símbolos que nos massacrem. Quando falamos de “escravos”, sabemos qual povo era escravizado na época — afirma Bruna Rodrigues, lembrando o Massacre de Porongos (1844), no qual escravizados que lutavam com promessa de alforria teriam sido traídos por um general farroupilha, sendo mortos por forças imperiais.

Tradição questionada
Atualmente, mudar os símbolos estaduais dependeria da aprovação de um projeto com maioria simples — metade dos deputados, mais um. Se a PEC em discussão for aprovada, alterações dependeriam de três quintos dos votos. A proposta é do deputado Rodrigo Lorenzoni (PL), filho de Onyx Lorenzoni, ex-ministro do governo Bolsonaro. Na última terça-feira, houve um acordo para uma fusão da PEC com outro projeto, do deputado Luiz Marenco (PDT), prevendo que alterações nos símbolos estaduais devem ser rejeitadas ou ratificadas em referendos. No momento, não há projeto de lei tramitando com objetivo de alterar o hino.

— A PEC pretende aumentar o grau de proteção desses símbolos, mas se em algum momento a sociedade tiver interesse em alterar, basta se propor outra PEC. Temos muita cultura, um dos maiores folclores do mundo e isso precisa ser preservado. Há muito tempo, há um grupo minoritário da extrema-esquerda, que, na nossa opinião, tem um movimento democrático, mas desprovido de realidade histórica — afirma Lorenzoni. — Ninguém nega que exista racismo no mundo, mas que isso seja discutido amplamente, levando em consideração mais visões, que é o que estou propondo. O próprio (jornalista e escritor gaúcho Eduardo Bueno), que pode ser considerado de esquerda, tem um vídeo onde considera patética a interpretação.

Eduardo Bueno comenta sobre a afirmação de Lorenzoni e também sobre o texto original da PEC, que buscava tornar os símbolos do Estado “protegidos e imutáveis em sua integralidade”.

— Qualquer um que estude e conheça a História sabe que o passado está sempre mudando e querer tornar qualquer visão do passado, qualquer instituição, qualquer símbolo, em algo imutável “por lei” não é apenas uma vertigem conservadora: é um projeto irrealizável, uma ideia inexequível e uma pretensão estúpida — afirma Bueno. — Um vídeo que gravei em meu canal no YouTube, o Buenas Ideias, no qual digo que não considero a letra do Hino Rio-Grandense racista tem sido usado como argumento que “até gente de esquerda” defende a suposta imutabilidade do hino. Não sou de esquerda. Apenas me coloco o mais longe possível das posições do deputado gaúcho que propôs a, digamos assim, PEC da Imutabilidade dos “símbolos gaúchos”.

“Uma espécie de reparação histórica”
O deputado considera também que não se levantar para cantar o hino é uma falta de respeito à cultura gaúcha, referindo-se ao movimento, cada vez mais comum, de pessoas que não cantam e não reverenciam o símbolo. O deputado Matheus Gomes é um dos principais precursores deste protesto, inclusive se negando a cantá-lo durante sua posse. Ele acredita que imutabilidade de símbolos não combina com democracia.

— Os símbolos devem se adequar ao tempo, integrar processos e minorias historicamente excluídas, mas que já nunca deixaram de existir — pontua Gomes. — A discussão vai contra o movimento internacional de questionar símbolos que remetam ao escravismo e colonialismo.

Para a jurista, doutoranda em sociologia e ativista do movimento negro, Winnie Bueno, a PEC é uma tentativa de silenciamento.

— Não discutimos só o símbolo, mas a identidade do Estado. Para além de ser uma questão do movimento negro, abrange toda a população gaúcha, porque a mudança do hino é uma espécie de reparação histórica. A mutabilidade silencia um diálogo da participação coletiva, um movimento educativo — afirma Bueno.

É importante ressaltar que o hino já foi alterado anteriormente, em 1966. Em seu livro “História regional da infâmia — O destino dos negros e outras iniquidades brasileiras (ou como se produzem os imaginários)”, o jornalista Juremir Machado da Silva relembra que a estrofe “Entre nós, reviva Atenas / Para assombro dos tiranos / Sejamos gregos na glória / E na virtude, romanos” foi retirado da letra devido ao apelo conservador do período da ditadura militar.

A respeito do mesmo assunto, o pesquisador e professor titular no Departamento de História da UFRGS, José Rivair Macedo, afirma que a questão é a retroalimentação da ideologia senhorial, retirada do liberalismo europeu no presente, e que o componente racista da letra era bem mais explícito antes da alteração de 1966.

— Penso que a demanda por parte de representações dos movimentos negros do Rio Grande do Sul tem pertinência na medida em que pessoas negras não foram convidadas a opinar sobre o quanto se sentiam representadas no hino de seu estado nem quando ele foi escrito por apenas uma pessoa, em 1838, nem quando ele foi oficializado, em 1935, por acadêmicos brancos do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul — afirma Macedo. — Enquanto as transformações são inerentes aos processos históricos, parece-me que a demanda pela alteração do trecho racista do hino é uma prova cabal de que, independentemente do passado escravista, para as pessoas negras que se mobilizam no presente o importante é como elas serão retratadas no futuro.

 

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