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Fabricantes de remédios pagam comissões e até viagens a atendentes de farmácia para estimular venda de produtos

Laboratórios farmacêuticos pagam comissões de até 30% e até viagens internacionais a balconistas de redes de farmácias para que indiquem medicamentos e vitaminas aos clientes. A revelação foi feita pelo Fantástico em reportagem especial produzida pela RBS TV.

Autoridades nacionais na área da saúde e dos direitos do consumidor condenam a prática em um setor que, no ano passado, faturou R$ 76,9 bilhões no Brasil, conforme dados da consultoria IQVIA. Segundo os especialistas, o pagamento de comissões pode estimular o consumo excessivo de medicamentos e fazer mal à saúde. Apesar de criticada, a prática não é tipificada como crime.

O ponto de partida da investigação foi uma pesquisa em 48 ações trabalhistas de oito tribunais do trabalho – inclusive o TRT4, com sede em Porto Alegre – nos quais os vendedores descrevem o sistema. Ao deixarem os empregos, os balconistas ingressaram com ações para incorporar as comissões, pagas por fora do contracheque, aos salários.

Na grande maioria das sentenças, os juízes reconhecem as bonificações e condenam as farmácias a pagar direitos como horas-extra e férias também sobre as comissões. No Rio Grande do Sul, a reportagem da RBS TV identificou processos em pelo menos seis cidades: Porto Alegre, Canoas, São Leopoldo, Passo Fundo, Guaíba e Taquari, onde a balconista de uma farmácia revelou que os repasses de laboratórios eram entregues por motoboys, em dinheiro vivo. Outro vendedor, em depoimento à Justiça do Trabalho, explicou como a comissão funciona:

— O critério de pagamento da bonificação é individual, ou seja, pelas vendas realizadas, inclusive o subgerente e o farmacêutico (recebem os valores).

Mas os pagamentos podem ser, ainda, na forma de cartão de débito, viagens internacionais ou até em vales-compra e eletrodomésticos, como descreve uma auditoria do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul realizada em uma farmácia de um instituto de previdência de servidores municipais do interior.

Durante um ano, a reportagem examinou 12 mil páginas de processos, localizou balconistas e até ex-gerentes que confirmaram a prática.

— O balconista que entra há pouco tempo em farmácia, a primeira coisa que ele aprende é: “tu ganha comissão se tu vender esse produto”. É a primeira coisa que eles ensinam — explica um balconista do Vale do Sinos, com 15 anos de experiência.

Sem saber que eram gravados por uma câmera escondida, vendedores e gerentes de farmácias admitiram o comissionamento. Um dos segmentos mais lucrativos é o de vitaminas. Um frasco de cálcio, de R$ 69, por exemplo, rende ao vendedor uma comissão de R$ 10, conforme tabela obtida pela reportagem.

— Tem que empurrar. Tem que tentar incentivar ele levar. Incentiva ele levar e tu ganha comissão — declarou um balconista de uma rede de farmácias no centro da capital.

A falsa ideia de que vitaminas aumentam a imunidade contra a covid-19 é uma das táticas usadas empurrar os suplementos, como comprovou a reportagem em outra farmácia do centro. A oferta foi feita à reportagem após uma compra.

– Algo mais você precisa?
– Só.
– Vitamina. Vitamina C, Zinco.
– Será que ajuda pra Covid?
– Fortalece o organismo. Dá mais imunidade, sim.
– É?
– Bastante mais disposição. R$ 49,90, 60 comprimidos. É um por dia.

O professor de Farmácia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Diego Gnatta, alerta para o consumo excessivo de vitaminas.

— O consumo exagerado dessas vitaminas por suplementação podem inclusive causar danos hepáticos, enxaqueca, vômito, e outros efeitos.

Intoxicações por excesso desses suplementos também estão entre os riscos, conforme o professor. Até mesmo o consumido de medicamentos sem exigência de receita, como analgésicos, anti-inflamatórios e relaxantes musculares podem acarretar em problemas como danos renais e gastroenterites, se ocorrerem de forma indiscriminada, adverte Gnatta.

Entre os medicamentos tarjados, as comissões são pagas por fabricantes de genéricos e similares. Conforme as sentenças, os percentuais eram maiores para remédios que não tinham “boa venda” ou que eram “pré-vencidos” (perto de expirar o prazo de validade), como no relato de um balconista à justiça do trabalho, em Canoas. E chegam a representar 75% do salário mensal de um funcionário.

— Isso é uma situação abjeta. Isso só tem sentido na corrupção, no interesse escuso do balconista de farmácia de tentar vender um produto que ele tem interesse porque tá sendo pago um percentual para ele pra vender aquele produto — opina o presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Mauro Ribeiro, que orienta os consumidores a sempre observarem a prescrição médica.

Na opinião do presidente do CFM, um dos riscos dessa prática é a troca do medicamento receitado pelo médico, o que não deve ser aceito pelo paciente. Muitas vezes, esses profissionais prescrevem fármacos de referência, que não rendem comissões  aos vendedores.

Na capital, o corretor de seguros Nilton Belsarena sentiu na pele, e no bolso, os efeitos dessa prática. Ele foi até uma farmácia para comprar fraldas para o neto, e o balconista tentou empurrar também um analgésico para cólicas menstruais.

— Eles oferecem como promoção e tem uma lábia ali toda na hora que te envolve, lamenta.

O Sindicato das Indústrias Farmacêuticas (Sindusfarma) condenou o pagamento de comissões.

— Fui pego de surpresa com a informação que você tá passando. Reajo com muito espanto porque, de fato, todos os associados do Sindusfarma, quando eles entram na entidade, eles assinam um código de conduta e um código de ética. Ele diz que não é permitido esse tipo de comissionamento a médicos e a qualquer pessoa que faça parte da saúde -destaca Nelson Mussolini, presidente-executivo do sindicato, que orienta os clientes a sempre seguirem a prescrição médica.

Já a Associação Brasileira das Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) afirmou, em nota, desconhecer o pagamento de comissões.

GZH

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