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Ex-preso político relata sobre tortura e humilhação no cárcere

Emílio Ivo Ulrich, natural de São Valério do Sul (na época pertencente a Três Passos/RS), nascido no dia 19 de maio de 1947, filho de Reinoldo Ulrich (já falecido) e Nair Panasiuk Ulrich, publicitário, residente na capital paulista, “preso político durante a ditadura militar”, retornando às suas raízes neste mês de janeiro de 2014 para visitar parentes, entre eles o vice-prefeito Silvio Kondra, seu primo-irmão, esteve na redação do jornal O Celeiro, onde fez impressionantes e dramáticas declarações sobre sua prisão e torturas sofridas como preso político nos anos de chumbo.

 

 

Ainda menino, saiu de São Valério do Sul para morar na capital gaúcha. Admirador de Brizola, aos 16 anos já participava ativamente dos movimentos estudantis. Mesmo tendo servido ao exército, nunca deixou de manter a resistência contra a ditadura. A partir de 1967, muito envolvido na política estudantil, sofreu forte pressão e acabou indo para São Paulo. Lá se juntou a outros gaúchos que já estavam envolvidos no movimento do Lamarca (um dos líderes da oposição armada à ditadura militar).

Preso por nove meses, entre 1970/1971, Emilio diz ter a sua história pessoal de tortura, e de ter presenciado centenas de outras pessoas serem torturadas, seviciadas, noite e dia, inclusive mulheres.

Passei muito tempo sem ter oportunidade de falar, nem desdobrar meu processo, mas no ano passado, início de 2013, um amigo chamado Milton Saldanha Machado, jornalista, nascido em São Luiz Gonzaga, que esteve preso comigo, me convidou para ir ao lançamento de um livro que estava publicando, intitulado “O País Transtornado”, baseado nas memórias juvenis dele, mas da época da ditadura. Quando recebi o convite para ir ao lançamento do livro, não tinha conhecimento de qual era o conteúdo, mas ele, na página 3, fez uma menção ao meu nome, aí então eu tive que me expor, porque ele me expôs.

 

Dedicatoria do autor: "Minha homenagem especial a Emilio Ivo Ulrich, que dedicou sua vida ao amor pelo povo e enfrentou com dignidade a selvageria da ditadura. 

                                                                            

Foi aí então que eu resolvi entrar com processo contra o governo federal “por danos morais”, não pela perseguição e prisão, afinal de contas você está envolvido, mas pelo fato de que eu fui torturado, eles extrapolaram qualquer coisa que um governo “legal ou ilegal” poderia fazer contra o ser humano.

Em função disso, resolvi no ano passado também escrever um livro, que devo publicar no final deste ano, com ato de lançamento “em São Valério do Sul”, em homenagem à minha terra natal. Só que o meu livro é um pouco diferente, não conto sobre fato histórico da guerrilha. Eu conto sobre o fato que considero a maior vergonha para o Brasil em todos os tempos. Eu falo da tortura. Tortura das pessoas que eram presas políticas, que eram presas torturadas. Muitas morreram ali na tortura, outros por mortes fora como se tivessem resistido a uma prisão. Desde 1973, quando eu saí da cadeia pela última vez, comecei a escrever para poder me tornar um cara assim…, eu tinha problemas, só não fiquei louco. Eu bebia e escrevia, e agora tirei da mala preta, tudo escrito direitinho quanto aos tipos de tortura que sofri, o efeito da tortura na pessoa torturada, uma por uma, os que eu reconheci como meus torturadores, os caras que me torturaram, como era o comportamento deles. Isso tudo já declarei na Comissão da Verdade e em entrevista ao Jornal Nacional.

Cada um dá a sua contribuição, um conta como é que foi lá no Araguaia, outro conta como é que foi no presídio Tiradentes, outros… E eu passo por cima desses fatos históricos. Conto o que é um indivíduo, um ser humano, ser torturado.

Fui monitorado de 1967 a 1990, portanto extrapolou, já em plena democracia o SNI ainda me monitorava, isso eu descobri quando fui pedir meu habeas data, lá estava tudo arquivado.

Hoje se faz uma discussão muito forte sobre a história desse país. Mas é uma história não revelada. Oficialmente, existe a versão do exército. A verdadeira história da ditadura e do golpe de 64 não está escrita. Foi um ato de civis, empresários e grande parte da igreja católica.

A tortura, no meu caso pessoal, a partir do dia que fui preso, consistiu em pau de arara, choque elétrico, telefone nos ouvidos, palmatória. Alguns torturadores adotavam a pancadaria, no pau mesmo. Batiam nas costas, nos rins, e aquelas borrachas então! E eu fui apanhando. Eles tinham uma única finalidade quanto a minha pessoa, “que eu dissesse onde estava o FUJIMORI” (Yoshitane Fujimori, guerrilheiro, integrante da luta armada contra a ditadura militar) que estava na rua, e eles sabiam que ele estava na rua e tentavam me obrigar a dizer onde ele estava. Da seção de choque elétrico me passaram para a palmatória, depois para o “pau-de-arara”, me penduraram pelos pés, e continuaram dando choque elétrico, e depois a chamada “cadeira do dragão” (instrumento de tortura utilizado).

Pau de Arara

                                                                                                                                         

 

Cadeira do Dragão

                                                                           

 Certo dia, 6 de dezembro de 1970, estava uma estranha calmaria no pátio da prisão, aí às 03h da tarde foi uma explosão de euforia geral entre os torturadores que lá estavam reunidos. Por quê? Porque ao meio dia eles tinham encontrado e metralhado o Yoshitane Fujimori, comandante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), e a explosão de alegria deu-se no exato momento (03h da tarde) que foi confirmada a identificação do morto, através de reconhecimento.

Passei a noite inteira ouvindo, lá da cela, a festa que eles fizeram pela morte de Fujimori. Eu fui visitado na carceragem por civis e militares participantes da festa, se vangloriando de terem matado o meu chefe, o meu comandante, e coisa desse tipo.

No dia seguinte, 06h da manhã, o carcereiro Risadinha (cabo da aeronáutica) me mandou sair da cela, colocar uma bermuda e camiseta. Aí eu pensei, “vou pro pau de novo”. Ao atravessar o pátio avistei o cenário da festa da noite anterior, cadeiras e mesas com muita sujeira, bandejas com restos de salgados e garrafas de bebidas espalhadas pelo chão.  Risadinha mandou que eu limpasse toda aquela sujeira e colocasse tudo em ordem. Falei que não tinha condições de fazer a limpeza, pois não conseguia nem parar em pé, a sola dos pés estava sangrando, e as mãos muito machucadas. Ele então me mandou limpar o tanque ao lado, entupido de vômito. Sem alternativas, meti as mãos e limpei o tanque. Enquanto fazia a limpeza ouvi do carcereiro o comentário, no claro intuito de me humilhar mais ainda: Alemão, comemoramos esta noite a morte do teu chefe, e ainda fomos premiados, até eu ganhei algum, exibindo o dinheiro que tinha recebido. Ou seja, a festa da noite revelou um fato que todo mundo contava, que quando matavam um cara importante ou prendiam um cara importante, militares e civis envolvidos na repressão recebiam dinheiro pelas atrocidades praticadas, cujos patrocinadores eram empresários.

Após isso, veio a fase mais deprimente. Certa feita, passei das 11h da noite até às 03h da madrugada, “num pau direto”. O Vetorazzo (João José Vetorazzo, hoje delegado de polícia) já sabia mais ou menos aonde é que estava o Laerte (Laerte Dornelles Méliga, 3° homem da VPR). Mas ele me disse: Alemão, “hoje tu vai tomar um pau pra nós passar a limpo o que é que tu sabes e o que tu não sabes”. Iniciou-se, então, a seção tortura, mais uma vez, pau e borracha, misturado com perguntas sobre pessoas, quem eram, onde se encontravam, o que faziam, enfim. Me levaram para o “pau de arara” onde, em certo momento sem ter mais condições de falar, totalmente fragilizado, exclamei: AI MEU DEUS DO CÉU! Pra quê? O torturador Vetorazzo ouvindo minha exclamação enfureceu. Mandou me tirar do “pau de arara”, me colocar na “Cadeira do Dragão”, SÓ PORQUE EU MENCIONEI O NOME DE DEUS. Extremamente irritado, ele falou: AQUI NESTA SALA NÃO EXISTE DEUS. DEUS AQUI SOU EU. E eu apanhei mais duas horas só porque falei “ai meu Deus”.  Desesperado, falei: AI MINHA MÃE! A reação do torturador: AQUI A SUA MÃE TINHA É QUE ESTAR NO SEU LUGAR, PRA VOCÊ NÃO TER NASCIDO.

Entrou o comandante (CoronelCarlos Alberto Brilhante Ustra), que já não gostava de mim, porque eu sou gaúcho, de São Valério do Sul, e ele de Santa Maria. Após comentários de desprezo e ironias, me tiraram da cadeira, mas eu não conseguia ficar de pé, tentei parar de quatro, não consegui, aí Risadinha “me botou uma coleira no pescoço” e com uma corda amarrada me puxou até o fundo do corredor assoviando e dizendo, “vem, vem…, tal qual se trata um cachorro na corda. 

Então eu escrevo no meu livro que isso foi a coisa que mais me humilhou,  é a parte que eu denomino de O HOMEM CHAMADO CACHORRO.  Eu fui transformado num cachorro. Depois fui levado para o chuveiro, o que não era chuveiro, era um cano onde escorria água fria. Chegou um enfermeiro e me aplicou uma injeção no garrão. Eu estava tão trêmulo a ponto de perder absolutamente o controle. Minutos depois da injeção eu senti um calor muito forte. Pensei: “resolveram me matar”. Senti-me gelado. Levaram-me para uma sala, sem cama, sem nada, e disseram: deixa ele aí, ele não aguenta mais. Fiquei lá deitado o resto da noite. Fui extremamente humilhado, extrapolaram a tortura alcançando a destruição da dignidade humana.

Eu tenho a minha convicção pessoal, ninguém resiste o pau, ninguém resiste a uma tortura. Tortura não acaba, eu sou torturado até hoje. Prisão passa, mas a tortura não passa. Agora, o que acontece com um camarada que está pendurado no pau de arara ou quando está levando choque? Nessa noite, foi a noite que eu tive que apelar pra Deus e pra minha mãe. Eles foram extremistas, “meteram o fio elétrico direto no meu ânus, depois colocaram a maquininha na cabeça do meu pênis, no dedão do pé”. Isso, para mim, não é tortura, é humilhação absoluta. Não há dinheiro que pague.

                                                                                                                                                                                                             Por Alaides Garcia dos Santos

 

 

 

 

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