A porta que se fecha com o julgamento de Bolsonaro

Por  Roberto Mota – Gazeta do Povo


Fachada do Supremo Tribunal Federal. (Foto: Fellipe Sampaio /STF)

O veredito menos surpreendente da história brasileira acaba de ser anunciado: o ex-presidente Jair Bolsonaro e vários outros réus foram condenados por crimes que incluem “tentativa de abolição do estado democrático de direito” e “golpe de estado”. Bolsonaro foi condenado a 27 anos de prisão em regime fechado, Walter Braga Netto a 26 anos de prisão, Anderson Torres a 24 anos e perda de cargo na Polícia Federal, Almir Garnier Santos a 24 anos, Augusto Heleno a 21 anos, Paulo Sérgio Nogueira a 19 anos, Mauro Cid a 2 anos em regime aberto e Alexandre Ramagem a 16 anos de prisão, perda de mandato de deputado federal e perda do cargo na Polícia Federal. Todos ficarão inelegíveis por 8 anos após o cumprimento das sentenças e, além de multas individuais, terão que pagar uma multa “solidária” de R$ 30 milhões.

Ao debater o valor da multa, um dos ministros comentou em tom mordaz que o réu Jair Bolsonaro teria “boa situação financeira”, lembrando de doações via Pix que teriam sido recebidas por ele. Apesar da gravidade da decisão e de suas consequências, o bom-humor predominou enquanto os ministros pronunciavam suas sugestões para o tempo em que o ex-presidente deveria ficar na cadeia.

Se não houve surpresa alguma com esse resultado, certamente houve choque; o choque de ver confirmada uma previsão que, apesar de já ser considerada certa, ainda assim não perdeu o poder de espantar.

A surpresa já tinha vindo um dia antes, no voto do ministro Luiz Fux.

No início da semana, no programa Os Pingos nos Is, eu disse que não esperava nenhuma novidade no julgamento. Errei. O voto do ministro Fux não foi apenas desconcertante e divergente; na opinião de muitos juristas ele foi demolidor. É um voto a ser estudado em salas de aula de Direito no Brasil do futuro – um país que, por algum milagre, tenha se reencontrado com a legalidade.

Um milagre será necessário porque o voto do ministro Fux apontou três nulidades – três fatores que, na sua opinião, tornariam o processo nulo. Em primeiro lugar, a corte não teria competência para julgar o caso, já que os réus deste processo não têm foro privilegiado – eles deixaram seus cargos no governo antes que fosse modificado o entendimento da corte sobre a manutenção do foro. Os réus deveriam ser julgados por um juiz de primeiro grau, disse o ministro Fux.

Em segundo lugar, disse o ministro, mesmo que, de alguma forma, fosse reconhecida a competência da corte, o caso não deveria ser julgado pela turma, e sim pelo plenário, lugar onde foram realizados todos os grandes julgamentos. Por último, afirma o ministro, ficou comprovado que houve cerceamento de defesa. Para o ministro Luiz Fux, trata-se de nulidades insanáveis.

Em seu extenso voto (a leitura durou treze horas) o magistrado fez um exame detalhado dos autos, provas e alegações. Ele considerou cada uma das acusações, submeteu as provas apresentadas a testes temporais e de lógica, e comparou as condutas dos réus com aquelas definidas na lei como crimes. Ao final desse processo, o ministro votou pela absolvição do ex-presidente Bolsonaro. Segundo ele, os fatos narrados pela Procuradoria Geral da República não correspondem ao crime de golpe de Estado. Para o ministro, também não é possível dizer que os crimes praticados nos atos de 8 de janeiro de 2023 decorrem de discursos e entrevistas do ex-presidente. Ele lembrou que “a lei não permite que se considere uma pessoa responsável por crimes cometidos por outros que foram influenciados por suas palavras”. E deu um claro exemplo: a culpa pelo atentado sofrido por Jair Bolsonaro em 2018 não pode ser imputada a opositores políticos que usaram retórica violenta contra o então candidato.

É o óbvio.

Em homenagem ao jurista Evaristo de Moraes, o ministro Fux lembrou que “um crime só existe quando a conduta se encaixa na lei penal como uma luva se encaixa na mão”. Além de Bolsonaro, o ministro pediu a absolvição de todos os outros réus, à exceção de Mauro Cid e Braga Neto.

Um dos trechos mais impactantes do voto de Fux fala sobre a imparcialidade do juiz. Ele disse: “O juiz deve acompanhar a ação penal com distanciamento, não apenas por não dispor de competência investigativa como também por seu necessário dever de imparcialidade”. Fux afirmou ainda que não compete ao tribunal realizar juízo político, e que sua missão exige objetividade, rigor técnico e “minimalismo interpretativo”.

O voto do ministro Luiz Fux produziu um alívio momentâneo em milhões de brasileiros. No dia seguinte vieram as condenações. Retornando de uma viagem a São Paulo, eu atravessava o saguão do Aeroporto de Congonhas quando um rapaz humilde me parou, os olhos cheios d’água. Ele disse: “me sinto como se o condenado fosse eu”.

Não é o único.

Há quem diga que o voto do ministro Fux, além de firmar sua posição como um defensor do Direito, abriu uma porta para que o tribunal saísse da confusão em que havia se metido.

Um dia depois o tribunal fechou a porta com estrondo.

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